História do tabaco
De erva santa a veneno que mata
02.01.2008, Arlindo Manuel Caldeira Investigador (in Público)
O tabagismo não tem, na Europa, mais de 500 anos. E o antitabagismo? Quando, como e onde surge a má vontade contra fumadores e outros consumidores de tabaco?
O consumo de tabaco é um hábito relativamente recente para a maioria dos povos do mundo.
A planta do tabaco, de que existem variadas espécies, crescia de forma espontânea em quase todo o continente americano, donde é originária. Desde tempos remotos que os ameríndios (particularmente os homens) consumiam as folhas secas do tabaco, em pó, em fumo ou como masticatório, quer na vida quotidiana quer, sobretudo, em rituais mágicos com carácter cerimonial ou fins medicinais.
O contacto dos europeus com a "nova" planta foi simultâneo à chegada ao Novo Mundo. Logo em 1492, Cristóvão Colombo pôde testemunhar a particular estima em que os índios tinham certas "folhas secas odoríferas" e membros da sua tripulação notaram que "muitos índios transportavam nas mãos um tição aceso". Eram os primeiros charutos. Futuras expedições, de espanhóis e de portugueses, identificaram melhor a planta e as formas de a consumir. Desta curiosidade "científica" passou-se à experimentação e, dessa forma, os primeiros fumadores europeus serão colonos peninsulares.
No Brasil, sabemos de portugueses que, ainda antes do meio do século XVI, já eram consumidores incondicionais de tabaco, o que acontecia não só com a gente do povo mas também, pelo menos, com um capitão-donatário, tão viciado em "beber fumo" que "sem ele não tinha vida". A divulgação do tabaco, entre os colonos europeus, crescia igualmente nos territórios ocupados pelos espanhóis, como sabemos por vários testemunhos (ver caixa).
Esta irreprimível atracção foi, porém, acompanhada por algumas reservas de carácter étnico-cultural: imitar os "selvagens" era identificar-se com eles, com a consequente perda de ascendência, pelo que muitos procurarão resistir-lhe. Em carta enviada do Brasil, a 6 de Janeiro de 1550, o célebre missionário jesuíta padre Manuel da Nóbrega refere que, ali, "as comidas, de um modo geral, são difíceis de digerir, mas Deus remediou a isto com uma erva cujo fumo ajuda muito à digestão e a outros males corporais e a purgar a fleuma do estômago. Até agora não há nenhum dos nossos Irmãos que a use, como também o não fazem outros cristãos para não se confundirem com os infiéis, que muito a apreciam. Eu teria necessidade dela, por causa da humidade e do meu catarro, mas abstenho-me".
Esta posição, além do preconceito religioso, mostra-nos aquilo que virá a ser uma das razões do sucesso do tabaco: o seu suposto valor medicinal. Sobretudo durante os séculos XVI e XVII, numerosos autores, primeiro portugueses e espanhóis, depois de outras nacionalidades, vão enaltecer as capacidades curativas desta planta americana que, durante muito tempo, será conhecida em Portugal pelo nome de "erva santa". Em 1566, o humanista Damião de Góis afirma poder dizer dela "cousas milagrosas", de que teria conhecimento directo, "principalmente em casos desesperados de apostemas [abcessos] ulcerados, fístulas, caranguejas [cancros!], pólipos, frenesis e outros muitos casos".
Na mesma ordem de ideias, um médico francês de fins do século XVI denomina o tabaco "remédio para todos os males", enquanto outros chamavam a atenção para os seus méritos em casos de bronquites, asmas, dores de dentes e cabeça, perturbações digestivas e até para "alegrar o espírito e afastar as preocupações". Já ia adiantado o século XVII e, por ocasião de uma violenta peste que atingiu a Inglaterra, ainda muitas crianças eram obrigadas a fumar um cachimbo por dia como forma de preservarem a saúde.
Primeiras resistências
Com o prestígio profiláctico e terapêutico que se viu, não admira que o tabaco tenha sido aceite de forma fulminante em todo o Velho Mundo. Será a partir da Península Ibérica, que nisto do vício mundial do tabaco tem culpas no cartório, que se divulgará não só o consumo como também o cultivo, uma vez que a planta revela prodigiosas capacidades de adaptação a quase todos os climas.
Em 1560, Jean Nicot, embaixador francês na corte de D. Sebastião, enviou, de Lisboa para França, alguns pés de tabaco, destinados à rainha-mãe e regente Catarina de Médicis, que sofria de violentas enxaquecas. Um gesto com consequências: não só foi um incalculável impulso para a divulgação do consumo do tabaco como o do nome do embaixador irá derivar a designação científica dada à planta ("nicotiana") e ao alcalóide que contém ("nicotina").
O tabaco, porém, não ficara parado, à espera que os botânicos o baptizassem: antes do fim do século XVI fizera já a sua entrada, praticamente, em todos os países da Europa e, na viragem do século, levado por mãos portuguesas e espanholas, é também já conhecido e recebido com entusiasmo na costa africana, nas Filipinas, na Índia, na China e no Japão.
À aceitação incondicional por parte dos consumidores vão responder muitos Estados com reservas e interdições. Os argumentos são diversos. Na maioria dos casos trata-se de justificações de ordem moral contra esse "costume de selvagens". Outras vezes, mais raras, referem-se os perigos para a saúde que, contra a corrente maioritária dos defensores, começavam a ser invocadas por alguns médicos. Nos países do Norte da Europa uma das razões apontadas é de carácter mais prático: os fumadores seriam involuntariamente responsáveis por muitos dos incêndios que consumiam as cidades, em que a madeira continuava a ser o principal material de construção. Outra motivação, embora menos referida, era, provavelmente, mais decisiva: numa época de proteccionismo e nacionalismo económico (é o momento alto do mercantilismo), o tabaco, em grande parte importado do estrangeiro, era um peso negativo na balança comercial.
Em Inglaterra, é o próprio rei Jaime I que, em 1619, publica um livro contra o abuso do tabaco, "esse hábito repugnante para a vista, nauseabundo para o olfacto, perigoso para o cérebro, nocivo para o peito, que expande à volta do fumador exalações tão infectas como as das profundezas dos infernos".
Durante o século XVII, e por períodos mais ou menos longos, o tabaco foi formalmente proibido, entre outros países, na Dinamarca, Suécia, Noruega, Holanda, Áustria, Hungria, em alguns Estados italianos, na China e no Japão. Na maioria dos cantões suíços o uso do tabaco era punido com bastonadas. Mais violentas ainda parecem ter sido as disposições tomadas na Rússia, na Pérsia e no Império Otomano contra o tabagismo: os consumidores ficavam sujeitos ao corte do nariz e, em caso de reincidência, à pena capital.
O olho do fisco
A ineficácia da política proibicionista, patente na frequência com que a legislação se sucede, ano após ano, nos países referidos, mostrava a sua inadequação a um vício deste tipo. A maioria dos Estados percebeu, aliás, relativamente depressa que o tabaco podia ser uma verdadeira mina fiscal e, dessa forma, as proibições foram sendo substituídas por pesadas taxas alfandegárias. Noutros países, como Portugal, Espanha e França (onde nunca existiram quaisquer restrições ao consumo) optar-se-á mesmo por um regime de monopólio estatal do fabrico, distribuição e venda de tabaco, o qual, arrendado a particulares, se revelará uma fonte prodigiosa de receitas.
O caso português é significativo. Em 1716, o tabaco fornecia cerca de 20 por cento de todos os rendimentos da coroa, constituindo, por si só, mais do dobro dos célebres "quintos" do ouro do Brasil, e tudo isso "sem vexação nem clamor dos vassalos", como assinalava um documento da época. Sensivelmente pela mesma data, o dicionarista português, de origem francesa, padre Rafael Bluteau ironizava a propósito do "tabaco de cheirar", dizendo: "Desde a criação do mundo não era o nariz de proveito algum à República. Passados alguns sessenta séculos passou o tabaco dos campos da América para outras partes do mundo e, pouco a pouco, se fez o nariz tão proveitoso que encheu o erário dos príncipes e, com um pouco de pó, teve matéria para formar um dos mais sólidos fundamentos das riquezas desta monarquia".
O Estado tem, a partir de então, boas razões para não hostilizar o hábito do tabaco. E, por toda a parte, o seu consumo cresce em flecha durante o século XVIII. De pouco valem os protestos dos médicos que, embora continuem, na sua maioria, a encontrar vantagens no uso moderado do tabaco, começam a aperceber-se dos malefícios do seu abuso.
Cheirar, mascar e fumar
Ao longo do século XVIII, o uso do cachimbo, que tinha sido, até então, a forma mais comum de consumo do tabaco, parece conhecer, na Europa, um relativo eclipse e ficar cada vez mais circunscrito às classes populares. É o tabaco em pó (de que o rapé é uma versão sofisticada), aspirado pelo nariz, que passa a merecer os favores das "pessoas de qualidade", nobres ou eclesiásticos. A "pitada" (o gesto de levar o tabaco às fossas nasais) vai tornar-se, por cerca de um século, um gesto de elegância, e é em pó que o tabaco, consumido puro ou misturado com os mais diversos perfumes, da flor de laranjeira ao jasmim e ao âmbar, conquista definitivamente os salões. E será nos salões que o tabagismo perdeu o exclusivo de género, passando a receber também entusiástica aceitação por parte das mulheres.
No conjunto da população, urbana ou rural, além do cachimbo e do "tabaco de cheirar", havia, no século XVIII outras modalidades de consumo. Uma, a que talvez nos pareça hoje mais bizarra, era a introdução nas narinas de pequenas torcidas ou bolinhas de folha de tabaco, deixando-as lá um tempo razoável, prática que era considerada de grande mérito para "purgar o cérebro" e prevenir as dores de dentes, embora, segundo um autor da época, o fluxo nasal que por vezes provocava sujasse a barba e causasse nojo a quem conversava com os seus utilizadores. A outra modalidade, bem mais divulgada, era a de mascar o tabaco, o que, quando em excesso e segundo o mesmo autor, "altera o gosto, faz grave o bafo, negros os dentes e deixa os beiços imundos".
Descontado o fumo, que resistiu até agora à erosão do tempo, as outras práticas tabagistas do século XVIII merecem um pouco de reflexão, pela estranheza que nos causam (apesar de o rapé continuar a ter alguns adeptos no mundo e o mascar tabaco ser ainda corrente nas zonas rurais das Américas). Será que daqui a algum tempo, o expelir o fumo pela boca e pelo nariz, os cinzeiros e tudo o mais que anda hoje associado ao tabagismo será visto com a mesma repugnância com que pensamos em narizes a abarrotar de pó de tabaco, sujando imensos lenços "tabaqueiros", ou em torcidas pendendo das fossas nasais ou em insistentes e fétidos masticatórios? As fronteiras do limpo/sujo, conveniente/inconveniente, distinto/deselegante sofrem, ao longo do tempo, evoluções muito caprichosas e os gestos e os comportamentos têm, por vezes, uma história mais curta do que temos tendência para julgar.
Enquanto "nobres e outra gente ociosa" (a gente de sucesso de setecentos) passam entre si, nos salões elegantes, artísticas e valiosas caixas de rapé, noutros planetas da galáxia dos fiéis da nicotina ensaiavam-se "novas" formas de "tomar tabaco". Não se contentando com aperfeiçoarem e diversificarem os tipos de cachimbo, os europeus vão retomar uma das formas mais rudimentares de fumar, aquela que primeiro tinham conhecido entre os índios: o charuto, simples rolo, convenientemente apertado, de folhas secas de tabaco, previamente humedecidas. Portugueses e espanhóis foram os primeiros não americanos a experimentarem as delícias do charuto e será a partir da Península Ibérica que o "puro" ganhará quase toda a Europa no refluxo das invasões napoleónicas.
No arsenal nicotínico só falta uma arma, o cigarro. Mas não tarda. Parece ser também invenção dos índios, que há muito enrolavam tabaco partido em folhas de outras plantas. O contributo europeu (espanhol, provavelmente, e remontando ao século XVII) será o de usar para o efeito pequenos rectângulos de papel fino, os "papelitos". É inicialmente hábito de gente pobre mas a curiosidade romântica por Espanha e as guerras da primeira metade do século XIX ajudarão a espalhar esta forma de consumo pelos vários países da Europa. O cigarro, o velho cigarrillo ou "tabaco de papel", está pronto a dominar o mundo. Primeiro, enrolado pelos próprios fumadores, depois, a partir do início do século XX, impondo-se na sua versão industrial, devidamente empacotado.
O século XIX assistiu, portanto, a uma mudança significativa no consumo do tabaco: o "tabaco quente" (cigarro, charuto e cachimbo) destrona definitivamente o "tabaco frio" (tabaco de mascar e rapé). Uma das razões do recuo do rapé teve, aliás, a ver com motivações sociopolíticas: a Revolução Francesa e as revoluções liberais posteriores fizeram identificar o hábito do rapé com o que consideravam ser o reaccionarismo aristocrata de Antigo Regime.
Na segunda metade de oitocentos o aumento do número de consumidores de tabaco sofre uma aceleração imparável. Em 1874, um autor português, Inácio Vilhena Barbosa, escrevia com esta candura: "A calcular pelas tendências da nova geração, poder-se-á vaticinar que, em poucos anos, não haverá uma só pessoa do sexo masculino que deixe de fazer uso do tabaco." Com alguma misoginia, Vilhena Barbosa deixava de fora o sexo feminino mas a verdade é que, por essa data e por essa Europa fora, já muitas e muitas mulheres lançavam para os ares grandes baforadas de fumo.
Causa de todos os males
Contra este tabagismo em maré alta não há quem responda? Há. Em 1868, por exemplo, é criada a Associação Francesa contra o Abuso do Tabaco, seguindo, aliás, as passadas da Sociedade Britânica contra o Tabaco. Na América do Norte, a mesma coisa. E, por todos esses países, as campanhas moralistas e "higienistas" não têm conta. O vício do tabaco e a veemência antitabagista crescem em proporção directa.
Os argumentos serão da mais diferente natureza, como se pode ver pelas amostras que se seguem. Para o médico francês Hippolyte Dépierris, que escreve, em 1876, um extenso e apaixonado libelo contra o tabaco, este não é apenas um poderoso veneno causador de incontáveis doenças como é, igualmente, o responsável pela maioria dos suicídios e assassinatos. Mas, para lá das devastações a nível individual, não são menores as consequências a nível colectivo. Tudo o que na história recente de França incomodava Dépierris (a Comuna, a derrota de 1871 frente aos prussianos...), tudo tinha uma mesma causa: o tabaco, o tabaco que tinha morto no seio das próprias mães o vigor físico, intelectual e moral dos bravos gauleses. E dá um exemplo "histórico": "O mais mortífero de todos os venenos conhecidos, o tabaco, faz degenerar os homens, desmoraliza as sociedades, abate as nações, como sucedeu com a Espanha, a primeira que acreditou nesse embuste grosseiro da panaceia das Índias, que não foi mais que um legado de maldição e de vingança dos peles-vermelhas aos que foram os invasores do seu país e os primeiros exterminadores da sua raça."
O já antigo argumento racista (ser um hábito de povos selvagens) será retomado frequentemente, ao mesmo tempo que se recorre a outras razões de peso, a outras razões de alarme. Uma delas é a da quebra demográfica.
Paul Jolly (1865) "sabia" a que se devia a diminuição dos nascimentos: deve-se "ao zooesperma adormecido, ao desejo extinto, ao homem reduzido ao estado de eunuco pela nicotina que o torna indiferente perante as mulheres". Se a conservação da espécie humana está ameaçada, o mesmo acontece com a vegetação. Um outro autor inquietava-se com o facto de as árvores das avenidas de Paris, sobretudo junto aos grandes cafés, estarem a definhar e a morrer em larga escala. E adiantava o seu diagnóstico. O terrível arboricida não era outro que a contínua atmosfera de fumo de tabaco que envenenava a cidade.
Vício brando e útil
Os argumentos franceses contra o tabaco, com mais ou menos pormenor, foram repetidos com igual vigor em Portugal na segunda metade do século XIX e inícios do século XX. Aliás, um filantropo e zoófilo apaixonado, Júlio de Andrade, pagará, em 1904, do seu bolso, a tradução e edição de uma brochura com largos extractos do citado libelo antitabagista de Dépierris para ser distribuída gratuitamente entre os jovens.
O despertar do antitabagismo em Portugal tinha a ver com um enorme aumento do consumo: só entre 1880 e 1885, as vendas de tabaco cresceram mais de 75 por cento. É nesse contexto que são apresentadas à Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa várias dissertações, mais ou menos apreensivas, sobre os efeitos tóxicos do tabaco. E que se sucedem os livros sobre o "vício miserável", como lhe chamava Thomaz da Fonseca (1903) num terrível panfleto contra o tabaco que, segundo ele, afectava todos os sentidos e era o maior factor de morbidade (loucura incluída) e criminalidade. Citava, a propósito, um escritor francês: "Um flagelo, a peste, a fome, a guerra, vem, fere uma nação e desaparece. O tabaco, esse vem, fere, alastra-se, fica e a nação é que desaparece."
Por falta de argumentos, ou por estarem demasiado intoxicados com o tabaco e a propaganda, os fumadores (cujo número continuava sempre a aumentar) não parecem muito motivados a vir à barra da discussão. Só em 1933, timidamente, surgirá uma voz que pretende lançar alguma água na fogueira antitabágica. É a do médico Moutinho de Almeida (um fumador, é quase certo) que, sob o título "Um vício brando e útil" profere uma conferência no Rotary Clube de Lisboa onde argumenta: "O tabaco é um vício, mas um vício brando e útil - brando para o indivíduo e útil para o Estado."
Se, entre a assistência a essa palestra, estava alguém do Ministério da Finanças, com certeza que aplaudiu. O tabaco era então, como tinha sido no século XVIII e, em menor escala, ainda é hoje, um suporte poderoso da Fazenda Pública. O Estado dos nossos dias tem, porém, o coração dividido entre, por um lado, os argumentos das receitas fiscais e, por outro, as razões da saúde pública e do higienismo dominante.
E os fabricantes de tabaco? Será que vão encontrar uma nova forma de consumo que seja uma alternativa aceitável ao cigarro que conhecemos, quando já quase ninguém acredita que se trate de um "vício brando"? O tabaco terá ainda a mesma capacidade de adaptação em que foi fértil a sua (relativamente curta) história, desde a saída da América? É que, pela primeira vez nestes 500 anos, o antitabagismo está a andar mais depressa do que a nicotina.
De erva santa a veneno que mata
02.01.2008, Arlindo Manuel Caldeira Investigador (in Público)
O tabagismo não tem, na Europa, mais de 500 anos. E o antitabagismo? Quando, como e onde surge a má vontade contra fumadores e outros consumidores de tabaco?
O consumo de tabaco é um hábito relativamente recente para a maioria dos povos do mundo.
A planta do tabaco, de que existem variadas espécies, crescia de forma espontânea em quase todo o continente americano, donde é originária. Desde tempos remotos que os ameríndios (particularmente os homens) consumiam as folhas secas do tabaco, em pó, em fumo ou como masticatório, quer na vida quotidiana quer, sobretudo, em rituais mágicos com carácter cerimonial ou fins medicinais.
O contacto dos europeus com a "nova" planta foi simultâneo à chegada ao Novo Mundo. Logo em 1492, Cristóvão Colombo pôde testemunhar a particular estima em que os índios tinham certas "folhas secas odoríferas" e membros da sua tripulação notaram que "muitos índios transportavam nas mãos um tição aceso". Eram os primeiros charutos. Futuras expedições, de espanhóis e de portugueses, identificaram melhor a planta e as formas de a consumir. Desta curiosidade "científica" passou-se à experimentação e, dessa forma, os primeiros fumadores europeus serão colonos peninsulares.
No Brasil, sabemos de portugueses que, ainda antes do meio do século XVI, já eram consumidores incondicionais de tabaco, o que acontecia não só com a gente do povo mas também, pelo menos, com um capitão-donatário, tão viciado em "beber fumo" que "sem ele não tinha vida". A divulgação do tabaco, entre os colonos europeus, crescia igualmente nos territórios ocupados pelos espanhóis, como sabemos por vários testemunhos (ver caixa).
Esta irreprimível atracção foi, porém, acompanhada por algumas reservas de carácter étnico-cultural: imitar os "selvagens" era identificar-se com eles, com a consequente perda de ascendência, pelo que muitos procurarão resistir-lhe. Em carta enviada do Brasil, a 6 de Janeiro de 1550, o célebre missionário jesuíta padre Manuel da Nóbrega refere que, ali, "as comidas, de um modo geral, são difíceis de digerir, mas Deus remediou a isto com uma erva cujo fumo ajuda muito à digestão e a outros males corporais e a purgar a fleuma do estômago. Até agora não há nenhum dos nossos Irmãos que a use, como também o não fazem outros cristãos para não se confundirem com os infiéis, que muito a apreciam. Eu teria necessidade dela, por causa da humidade e do meu catarro, mas abstenho-me".
Esta posição, além do preconceito religioso, mostra-nos aquilo que virá a ser uma das razões do sucesso do tabaco: o seu suposto valor medicinal. Sobretudo durante os séculos XVI e XVII, numerosos autores, primeiro portugueses e espanhóis, depois de outras nacionalidades, vão enaltecer as capacidades curativas desta planta americana que, durante muito tempo, será conhecida em Portugal pelo nome de "erva santa". Em 1566, o humanista Damião de Góis afirma poder dizer dela "cousas milagrosas", de que teria conhecimento directo, "principalmente em casos desesperados de apostemas [abcessos] ulcerados, fístulas, caranguejas [cancros!], pólipos, frenesis e outros muitos casos".
Na mesma ordem de ideias, um médico francês de fins do século XVI denomina o tabaco "remédio para todos os males", enquanto outros chamavam a atenção para os seus méritos em casos de bronquites, asmas, dores de dentes e cabeça, perturbações digestivas e até para "alegrar o espírito e afastar as preocupações". Já ia adiantado o século XVII e, por ocasião de uma violenta peste que atingiu a Inglaterra, ainda muitas crianças eram obrigadas a fumar um cachimbo por dia como forma de preservarem a saúde.
Primeiras resistências
Com o prestígio profiláctico e terapêutico que se viu, não admira que o tabaco tenha sido aceite de forma fulminante em todo o Velho Mundo. Será a partir da Península Ibérica, que nisto do vício mundial do tabaco tem culpas no cartório, que se divulgará não só o consumo como também o cultivo, uma vez que a planta revela prodigiosas capacidades de adaptação a quase todos os climas.
Em 1560, Jean Nicot, embaixador francês na corte de D. Sebastião, enviou, de Lisboa para França, alguns pés de tabaco, destinados à rainha-mãe e regente Catarina de Médicis, que sofria de violentas enxaquecas. Um gesto com consequências: não só foi um incalculável impulso para a divulgação do consumo do tabaco como o do nome do embaixador irá derivar a designação científica dada à planta ("nicotiana") e ao alcalóide que contém ("nicotina").
O tabaco, porém, não ficara parado, à espera que os botânicos o baptizassem: antes do fim do século XVI fizera já a sua entrada, praticamente, em todos os países da Europa e, na viragem do século, levado por mãos portuguesas e espanholas, é também já conhecido e recebido com entusiasmo na costa africana, nas Filipinas, na Índia, na China e no Japão.
À aceitação incondicional por parte dos consumidores vão responder muitos Estados com reservas e interdições. Os argumentos são diversos. Na maioria dos casos trata-se de justificações de ordem moral contra esse "costume de selvagens". Outras vezes, mais raras, referem-se os perigos para a saúde que, contra a corrente maioritária dos defensores, começavam a ser invocadas por alguns médicos. Nos países do Norte da Europa uma das razões apontadas é de carácter mais prático: os fumadores seriam involuntariamente responsáveis por muitos dos incêndios que consumiam as cidades, em que a madeira continuava a ser o principal material de construção. Outra motivação, embora menos referida, era, provavelmente, mais decisiva: numa época de proteccionismo e nacionalismo económico (é o momento alto do mercantilismo), o tabaco, em grande parte importado do estrangeiro, era um peso negativo na balança comercial.
Em Inglaterra, é o próprio rei Jaime I que, em 1619, publica um livro contra o abuso do tabaco, "esse hábito repugnante para a vista, nauseabundo para o olfacto, perigoso para o cérebro, nocivo para o peito, que expande à volta do fumador exalações tão infectas como as das profundezas dos infernos".
Durante o século XVII, e por períodos mais ou menos longos, o tabaco foi formalmente proibido, entre outros países, na Dinamarca, Suécia, Noruega, Holanda, Áustria, Hungria, em alguns Estados italianos, na China e no Japão. Na maioria dos cantões suíços o uso do tabaco era punido com bastonadas. Mais violentas ainda parecem ter sido as disposições tomadas na Rússia, na Pérsia e no Império Otomano contra o tabagismo: os consumidores ficavam sujeitos ao corte do nariz e, em caso de reincidência, à pena capital.
O olho do fisco
A ineficácia da política proibicionista, patente na frequência com que a legislação se sucede, ano após ano, nos países referidos, mostrava a sua inadequação a um vício deste tipo. A maioria dos Estados percebeu, aliás, relativamente depressa que o tabaco podia ser uma verdadeira mina fiscal e, dessa forma, as proibições foram sendo substituídas por pesadas taxas alfandegárias. Noutros países, como Portugal, Espanha e França (onde nunca existiram quaisquer restrições ao consumo) optar-se-á mesmo por um regime de monopólio estatal do fabrico, distribuição e venda de tabaco, o qual, arrendado a particulares, se revelará uma fonte prodigiosa de receitas.
O caso português é significativo. Em 1716, o tabaco fornecia cerca de 20 por cento de todos os rendimentos da coroa, constituindo, por si só, mais do dobro dos célebres "quintos" do ouro do Brasil, e tudo isso "sem vexação nem clamor dos vassalos", como assinalava um documento da época. Sensivelmente pela mesma data, o dicionarista português, de origem francesa, padre Rafael Bluteau ironizava a propósito do "tabaco de cheirar", dizendo: "Desde a criação do mundo não era o nariz de proveito algum à República. Passados alguns sessenta séculos passou o tabaco dos campos da América para outras partes do mundo e, pouco a pouco, se fez o nariz tão proveitoso que encheu o erário dos príncipes e, com um pouco de pó, teve matéria para formar um dos mais sólidos fundamentos das riquezas desta monarquia".
O Estado tem, a partir de então, boas razões para não hostilizar o hábito do tabaco. E, por toda a parte, o seu consumo cresce em flecha durante o século XVIII. De pouco valem os protestos dos médicos que, embora continuem, na sua maioria, a encontrar vantagens no uso moderado do tabaco, começam a aperceber-se dos malefícios do seu abuso.
Cheirar, mascar e fumar
Ao longo do século XVIII, o uso do cachimbo, que tinha sido, até então, a forma mais comum de consumo do tabaco, parece conhecer, na Europa, um relativo eclipse e ficar cada vez mais circunscrito às classes populares. É o tabaco em pó (de que o rapé é uma versão sofisticada), aspirado pelo nariz, que passa a merecer os favores das "pessoas de qualidade", nobres ou eclesiásticos. A "pitada" (o gesto de levar o tabaco às fossas nasais) vai tornar-se, por cerca de um século, um gesto de elegância, e é em pó que o tabaco, consumido puro ou misturado com os mais diversos perfumes, da flor de laranjeira ao jasmim e ao âmbar, conquista definitivamente os salões. E será nos salões que o tabagismo perdeu o exclusivo de género, passando a receber também entusiástica aceitação por parte das mulheres.
No conjunto da população, urbana ou rural, além do cachimbo e do "tabaco de cheirar", havia, no século XVIII outras modalidades de consumo. Uma, a que talvez nos pareça hoje mais bizarra, era a introdução nas narinas de pequenas torcidas ou bolinhas de folha de tabaco, deixando-as lá um tempo razoável, prática que era considerada de grande mérito para "purgar o cérebro" e prevenir as dores de dentes, embora, segundo um autor da época, o fluxo nasal que por vezes provocava sujasse a barba e causasse nojo a quem conversava com os seus utilizadores. A outra modalidade, bem mais divulgada, era a de mascar o tabaco, o que, quando em excesso e segundo o mesmo autor, "altera o gosto, faz grave o bafo, negros os dentes e deixa os beiços imundos".
Descontado o fumo, que resistiu até agora à erosão do tempo, as outras práticas tabagistas do século XVIII merecem um pouco de reflexão, pela estranheza que nos causam (apesar de o rapé continuar a ter alguns adeptos no mundo e o mascar tabaco ser ainda corrente nas zonas rurais das Américas). Será que daqui a algum tempo, o expelir o fumo pela boca e pelo nariz, os cinzeiros e tudo o mais que anda hoje associado ao tabagismo será visto com a mesma repugnância com que pensamos em narizes a abarrotar de pó de tabaco, sujando imensos lenços "tabaqueiros", ou em torcidas pendendo das fossas nasais ou em insistentes e fétidos masticatórios? As fronteiras do limpo/sujo, conveniente/inconveniente, distinto/deselegante sofrem, ao longo do tempo, evoluções muito caprichosas e os gestos e os comportamentos têm, por vezes, uma história mais curta do que temos tendência para julgar.
Enquanto "nobres e outra gente ociosa" (a gente de sucesso de setecentos) passam entre si, nos salões elegantes, artísticas e valiosas caixas de rapé, noutros planetas da galáxia dos fiéis da nicotina ensaiavam-se "novas" formas de "tomar tabaco". Não se contentando com aperfeiçoarem e diversificarem os tipos de cachimbo, os europeus vão retomar uma das formas mais rudimentares de fumar, aquela que primeiro tinham conhecido entre os índios: o charuto, simples rolo, convenientemente apertado, de folhas secas de tabaco, previamente humedecidas. Portugueses e espanhóis foram os primeiros não americanos a experimentarem as delícias do charuto e será a partir da Península Ibérica que o "puro" ganhará quase toda a Europa no refluxo das invasões napoleónicas.
No arsenal nicotínico só falta uma arma, o cigarro. Mas não tarda. Parece ser também invenção dos índios, que há muito enrolavam tabaco partido em folhas de outras plantas. O contributo europeu (espanhol, provavelmente, e remontando ao século XVII) será o de usar para o efeito pequenos rectângulos de papel fino, os "papelitos". É inicialmente hábito de gente pobre mas a curiosidade romântica por Espanha e as guerras da primeira metade do século XIX ajudarão a espalhar esta forma de consumo pelos vários países da Europa. O cigarro, o velho cigarrillo ou "tabaco de papel", está pronto a dominar o mundo. Primeiro, enrolado pelos próprios fumadores, depois, a partir do início do século XX, impondo-se na sua versão industrial, devidamente empacotado.
O século XIX assistiu, portanto, a uma mudança significativa no consumo do tabaco: o "tabaco quente" (cigarro, charuto e cachimbo) destrona definitivamente o "tabaco frio" (tabaco de mascar e rapé). Uma das razões do recuo do rapé teve, aliás, a ver com motivações sociopolíticas: a Revolução Francesa e as revoluções liberais posteriores fizeram identificar o hábito do rapé com o que consideravam ser o reaccionarismo aristocrata de Antigo Regime.
Na segunda metade de oitocentos o aumento do número de consumidores de tabaco sofre uma aceleração imparável. Em 1874, um autor português, Inácio Vilhena Barbosa, escrevia com esta candura: "A calcular pelas tendências da nova geração, poder-se-á vaticinar que, em poucos anos, não haverá uma só pessoa do sexo masculino que deixe de fazer uso do tabaco." Com alguma misoginia, Vilhena Barbosa deixava de fora o sexo feminino mas a verdade é que, por essa data e por essa Europa fora, já muitas e muitas mulheres lançavam para os ares grandes baforadas de fumo.
Causa de todos os males
Contra este tabagismo em maré alta não há quem responda? Há. Em 1868, por exemplo, é criada a Associação Francesa contra o Abuso do Tabaco, seguindo, aliás, as passadas da Sociedade Britânica contra o Tabaco. Na América do Norte, a mesma coisa. E, por todos esses países, as campanhas moralistas e "higienistas" não têm conta. O vício do tabaco e a veemência antitabagista crescem em proporção directa.
Os argumentos serão da mais diferente natureza, como se pode ver pelas amostras que se seguem. Para o médico francês Hippolyte Dépierris, que escreve, em 1876, um extenso e apaixonado libelo contra o tabaco, este não é apenas um poderoso veneno causador de incontáveis doenças como é, igualmente, o responsável pela maioria dos suicídios e assassinatos. Mas, para lá das devastações a nível individual, não são menores as consequências a nível colectivo. Tudo o que na história recente de França incomodava Dépierris (a Comuna, a derrota de 1871 frente aos prussianos...), tudo tinha uma mesma causa: o tabaco, o tabaco que tinha morto no seio das próprias mães o vigor físico, intelectual e moral dos bravos gauleses. E dá um exemplo "histórico": "O mais mortífero de todos os venenos conhecidos, o tabaco, faz degenerar os homens, desmoraliza as sociedades, abate as nações, como sucedeu com a Espanha, a primeira que acreditou nesse embuste grosseiro da panaceia das Índias, que não foi mais que um legado de maldição e de vingança dos peles-vermelhas aos que foram os invasores do seu país e os primeiros exterminadores da sua raça."
O já antigo argumento racista (ser um hábito de povos selvagens) será retomado frequentemente, ao mesmo tempo que se recorre a outras razões de peso, a outras razões de alarme. Uma delas é a da quebra demográfica.
Paul Jolly (1865) "sabia" a que se devia a diminuição dos nascimentos: deve-se "ao zooesperma adormecido, ao desejo extinto, ao homem reduzido ao estado de eunuco pela nicotina que o torna indiferente perante as mulheres". Se a conservação da espécie humana está ameaçada, o mesmo acontece com a vegetação. Um outro autor inquietava-se com o facto de as árvores das avenidas de Paris, sobretudo junto aos grandes cafés, estarem a definhar e a morrer em larga escala. E adiantava o seu diagnóstico. O terrível arboricida não era outro que a contínua atmosfera de fumo de tabaco que envenenava a cidade.
Vício brando e útil
Os argumentos franceses contra o tabaco, com mais ou menos pormenor, foram repetidos com igual vigor em Portugal na segunda metade do século XIX e inícios do século XX. Aliás, um filantropo e zoófilo apaixonado, Júlio de Andrade, pagará, em 1904, do seu bolso, a tradução e edição de uma brochura com largos extractos do citado libelo antitabagista de Dépierris para ser distribuída gratuitamente entre os jovens.
O despertar do antitabagismo em Portugal tinha a ver com um enorme aumento do consumo: só entre 1880 e 1885, as vendas de tabaco cresceram mais de 75 por cento. É nesse contexto que são apresentadas à Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa várias dissertações, mais ou menos apreensivas, sobre os efeitos tóxicos do tabaco. E que se sucedem os livros sobre o "vício miserável", como lhe chamava Thomaz da Fonseca (1903) num terrível panfleto contra o tabaco que, segundo ele, afectava todos os sentidos e era o maior factor de morbidade (loucura incluída) e criminalidade. Citava, a propósito, um escritor francês: "Um flagelo, a peste, a fome, a guerra, vem, fere uma nação e desaparece. O tabaco, esse vem, fere, alastra-se, fica e a nação é que desaparece."
Por falta de argumentos, ou por estarem demasiado intoxicados com o tabaco e a propaganda, os fumadores (cujo número continuava sempre a aumentar) não parecem muito motivados a vir à barra da discussão. Só em 1933, timidamente, surgirá uma voz que pretende lançar alguma água na fogueira antitabágica. É a do médico Moutinho de Almeida (um fumador, é quase certo) que, sob o título "Um vício brando e útil" profere uma conferência no Rotary Clube de Lisboa onde argumenta: "O tabaco é um vício, mas um vício brando e útil - brando para o indivíduo e útil para o Estado."
Se, entre a assistência a essa palestra, estava alguém do Ministério da Finanças, com certeza que aplaudiu. O tabaco era então, como tinha sido no século XVIII e, em menor escala, ainda é hoje, um suporte poderoso da Fazenda Pública. O Estado dos nossos dias tem, porém, o coração dividido entre, por um lado, os argumentos das receitas fiscais e, por outro, as razões da saúde pública e do higienismo dominante.
E os fabricantes de tabaco? Será que vão encontrar uma nova forma de consumo que seja uma alternativa aceitável ao cigarro que conhecemos, quando já quase ninguém acredita que se trate de um "vício brando"? O tabaco terá ainda a mesma capacidade de adaptação em que foi fértil a sua (relativamente curta) história, desde a saída da América? É que, pela primeira vez nestes 500 anos, o antitabagismo está a andar mais depressa do que a nicotina.