19.9.06

Ar de ROQUE

Enquanto me perdia pela net, fazendo investigação (mais!!) dei com esta delícia.. situo-vos: refere-se a uma, já tradicional, representação teatral (Auto de S. João), que se repete anualmente na freguesia de Subportela, bem perto de Viana.
Um relato fantástico!
«Domingo, 22 de Junho de 2003, a rondar as três da tarde cheguei ao monte de S. João, altar de Subportela, com uma ermida, dois coretos pequeninos, cruzeiros. Dia de festa, o sítio em alvoroço: a pista de carrinhos eléctricos, os vendedores ambulantes, a barraca de tiro, a tenda de comes e bebes, o chão do auto aperaltado e, fronteiro a este, um palanque para os convidados. Em actuação, a Banda dos Escuteiros de Barroselas. Junto ao cenário teatral, um burro; perto, à sombra, um velhote arredondado: «Nasci em terras de Barroso, há 74 anos. Naquela altura, era tudo nosso irmão, ti António, ti Maria. Uma ocasião foi lá um bispo inaugurar uma capela: Viva o ti bispo! Viva o ti bispo!»
José Vitorino Barroso foi almocreve, como o pai: «Matosinhos era peixe; nas estradas era carroça; nas serras era cargas, caixas, carvão, sal, cabritos, vitelos, suínos, castanhas, centeio. E muito vinho transportei eu sem guia para Espanha». Mais tarde, foi motorista de longo curso em Lisboa, depois, rendido ao amor, ancorou em Vila Mou, redondezas de Subportela.
Tinha ali história. Mas a minha atenção centrava-se no asno, laço vermelho, entre orelhas.
— É seu?
— Sim. É o Roque.
— Entra no auto?
— Leva uma moça a cavalo, Nossa Senhora e tal...
— Pagam-lhe alguma coisa por isso.
— Pagam: já comi, bebi, já está pago!
— Filho único?
— Tenho um outro, anda em Espanha a fazer cinema.
— Cinema?! Não me diga que esse é artista?
— É artista, é!
— Muito me conta. E chama-se?
— Roque.
— Têm o mesmo nome?!
— Têm o mesmo nome porque vieram do mesmo dono, o Roque de Campeã, lugar de Vendas de Baixo, Vila Real. Vieram do Fernando Roque. Todos os que vierem de lá chamo-lhes Roque.
— Então, diga-me, e aqui o Roque que idade tem?
— Cinco anos.
— E o artista?
— Seis. Esse está a dar no cinema espanhol, de Madrid.
— Então eles em Espanha não têm burros?
— Nem todos dão, que têm medo dos aviões. Aquele não tinha. Nem todos dão para o cinema.
— Não dão por terem de andar em viagem de avião, é isso?!
— Fora isso, alguns assustam-se. Na ponte velha de Ponte de Lima, os aviões andavam rasteiros, a voar perto de nós, se fossem bravos...
— Mas eles vão fazer em Madrid um filme com aviões?!
— Pois, para fazer o clima de guerra civil.
— Ah!— Havia outros deles, mas tinham medo. O meu não.
— O aluguer desse deve ter sido uma fortuna...
— Isso não é comigo.
— O quê, o burro tem empresário?!
— Vêm ter comigo, para eu emprestar. Desta vez foi o Tono da Barca, de Ponte. Conhece-me, procurou se eu cedia, que tinha lá um animal que era do senhor presidente da câmara, o Campelo, mas tinha medo dos aviões e da carroça. Os meus não têm medo. Eu converso com eles...
— E aqui o Roque, qual é o papel dele na festa?
— É como lhe disse, levam-no, para andar a moça a cavalo.
— Mas ele anda sempre com a Nossa Senhora?
— Eu julgo que sim. Eu entrego-o...Entrega-o, velho Barroso. Entrega-o. E o Roque desfila na procissão, entra em palco, depois. Findo o auto, toda a gente de volta a casa, Roque em cena, ainda. Calado, como sempre esteve. Nem um zurro, uma irreverência, um desvio do papel que lhe destinaram, tal qual a milenar narrativa: dorso sagrado de jumento a resgatar Maria da cidade de Belém, Jesus ao colo.»
(Texto de Augusto Baptista,
retirado do site da Cena Lusófona)